Histórias, Trajetórias e
Aprendizagens
Sou
professora desde criança. Aos três já havia decidido, e no meu imaginário, a
rotina escolar tomava forma com as bonecas, giz no guarda-roupa e material
escolar. A oficialização da profissão veio só aos dezenove anos, com a
formatura do magistério. Três meses após a cerimônia, mais precisamente dia
primeiro de abril, ingressava no serviço público em São Leopoldo. E o que
parecia brincadeira de criança, um tanto idealizada e romantizada no ensino
médio, não se mostrou tão fácil. Distorção idade e série, crianças em situação
de vulnerabilidade social, falta de desejo em aprender, indisciplina, entre outros elementos que não faziam parte
dos meus planos, fizeram me deparar as minhas fragilidades em lidar com uma
realidade tão distante do que foi construído desde a infância. Com todos os
motivos para desistir já no primeiro mês, tomei como desafio e segui em frente.
Em pleno auge do construtivismo, conceitos confusos e tentativas de práticas
inovadoras, em meio àquela realidade e temas geradores, fui sobrevivendo. E
julgando estar pronta, precisei, às duras penas, desconstruir uma imagem, para
construir um novo jeito de ser professora. E aprendi a aprender, com as
crianças, com o fracasso, com os pares, e nas pequenas conquistas. Os primeiros
anos foram difíceis, despir das minhas verdades para encontrar outras
incertezas que só no cotidiano da sala-de-aula poderia comprovar. Esse é um dos
legados do magistério para a vida.
No
mesmo ano que ingressei na rede municipal, em 1996, iniciei a graduação em
Educação Física na Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Embora o curso fosse
licenciatura, as disciplinas relacionadas a avaliação física, cinesiologia, ginástica
para academia, mostram possibilidades de trabalho fora da área escolar.
Estudava para essas disciplinas o suficiente para atingir a nota mínima, e as
disciplinas relacionadas a recreação escolar, dança, didática, teorias da
aprendizagem, me fascinavam, pois conseguia relacionar com a minha prática, e
de certa forma contribuíam no meu planejamento e na construção da minha
identidade docente. Em sala-de-aula comecei a usar mais o lúdico, apostar nas
atividades corporais, e assim consegui estabelecer um vínculo maior com as
crianças. Outra aprendizagem nesta trajetória: a afetividade é um importante
elemento no processo da aprendizagem.
Sempre
atuei em turmas de educação infantil, a antiga pré-escola, me intrigava a
ruptura feita desta modalidade para o ensino fundamental no que diz respeito ao
tempo destinado ao brincar e às atividades lúdicas. Percebia que o vínculo
construído na relação professor aluno iniciava neste espaço que a professora
abria. E como proposta de trabalho de conclusão de curso fui pesquisar e analisar
a formação docente no que diz respeito a corporeidade.
Mesmo
depois de formada, continuei atuando em turmas dos anos iniciais, especialmente
em turmas de educação infantil e alfabetização. A
minha facilidade em se adequar em diferentes situações e desafios me fizeram
experimentar diferentes cargos. Coordenei grupos de dança e teatro, projetos de
meio ambiente e esportes, laboratórios de estudos de recuperação, secretaria e
supervisão pedagógica. Neste mix de
atividades diferenciadas, fiz parte de
um grupo de professores que recebeu a formação do MEC intitulada “A cor
da cultura” que tinha por objetivo apresentar a lei 10.639, bem como material
didático próprio para o trabalho das questões étnico culturais. Por ser a única
representante na minha escola, tinha como dever repassar o conteúdo apresentado
no curso, e no ano seguinte assumi a coordenação do projeto Identidades, que
tinha por objetivo subsidiar professores com material para desenvolver a
temática, bem como atuar nas turmas com atividades que despertassem para o
respeito às diferenças, especialmente as étnicas.
A literatura infantil foi
um importante aliado neste processo. Nesta época ainda não haviam muitas
opções, então a história Menina Bonita do
Laço de Fita, da Ana Maria Machado, era contada e recontada, ora através de
fantoches, ora só contação.Os alunos simpatizam bastante com a personagem
principal visto que muitos tinham o mesmo tom de pele. E até hoje lembro o que
eu fazia com a história: ao mostrar a capa do livro, antes mesmo de iniciar a
contação, apontava para a menina e enfatizava a cor da pele, que era como a
minha e apontava para outras crianças negras, e explicava que ninguém deveria
ser superior ou menosprezar uma pessoa por ter esta característica. E que os
negros, foram escravos, sofreram muito, ... bla, bla, blá.
Com o tempo, e a reflexão
da prática, tive a oportunidade de rever conceitos, desconstruir a idéia de que
para tratar sobre negros não é necessário partir da sua condição de escravo. E
ao concluir a segunda graduação, em 2010, Pedagogia na Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, pesquisei sobre a contribuição da literatura infantil com
personagens negros na constituição da identidade de crianças da educação
infantil. A escolha da temática não foi por acaso, uma construção desde a
metade do curso, bem como um projeto aplicado numa turma de cianças de 4 e 5
anos. Nesta escrita, já posso afirmar que a escolha dete trabalho se deu muito
antes do ingresso na Pedagogia. O trabalho intitulado A
cinderela pode ser negra? Construindo identidades de crianças negras
numa turma de educação infantil foi transformado num artigo e
apresentado no IV SBECE.
No mesmo ano da formatura,
ingressei na rede municipal de Porto Alegre, e por coincidência, ou por ação do
destino, a escola a qual fui designada, tem um histórico de mais de 20 anos no
trabalho com as questões étnicas, sendo referencia entre outras escolas
municipais, principalmente nos primeiros anos seguintes a constituição da lei
10.639. Ainda no meu primeiro ano como professora da EMEF João Antonio Satte, a
escola lançou um livro de relatos de projetos realizados em sala de aula: Trança
de Gente: diversidade e resistência na escola João Antonio Satte. Feliz
por fazer parte deste grupo de professores que desenvolve projetos sobre
história e cultura afro brasileira, que cumpre a lei 10.639 sem que ela se torne um fardo no
planejamento, que acredita numa educação antirracista, enfim, tudo parecia
simples e belo. Aos poucos fui percebendo que o trabalho desenvolvido na escola
com esta temática era a paixão de alguns professores, que insistentemente
tentavam contagiar outros professores no engajamento do trabalho. E essas
discussões e planejamentos ocorriam nos intervalos, nos corredores, no
bate papo virtual após o horário de aula, em todos horários possíveis,
raramente nos espaços de reunião pedagógica. A lei 10.639; o pioneirismo da Escola João Antonio Satte no trato das
questões étnicas raciais negras; a garantia de uma educação antirracista
prevista no PPP; a edição do livro Trança de Gente; ainda não são dados
suficientes que garantam uma proposta ativa para uma educação antirracista em
todas as turmas.