Dos desafios de ousar e tentar não criar expectativas
Aos quarenta, já havia decidido que a partir de agora trocaria
aquelas listas de metas do ano (que só me frustravam) por experiências.
Inauguro hoje o marcador "Experiências". Um diário de bordo resumido, contando minhas proezas olímpicas, para além dos arcos e credencial.
Confesso que inicialmente a ideia não era ir sozinha, mas a tal
da "dona crise" nos pegou desprevenido, e entre desistir e ousar viajar
sozinha, resolvi arriscar.
Juro que não queria criar expectativas. Queria deixar correr solto, aproveitar todos os momentos conforme surgissem.Mas só o fato de não querer criar expectativas (esse é um dos desafios pessoais),
já sai uma lista imensa, quase que de forma inconsciente!
E durante os preparativos, a imaginação corria solta: passeio a
Búzios, noite carioca, madrugada na Lapa, posse do controle remoto num
quarto de hotel só meu, visita às praias paradisíacas, trilhas, Grupo Corpo no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, shows, conhecer muitas pessoas,
muita diversão, ...
Bem ...o Tales e a Laís já estavam convencidos que eu ficaria fora por uns
dias, mas na hora do "tchau", coração apertado e aquele sentimento de
culpa de mãe. Será que é certo? O que eles vão pensar? O que os outros
vão pensar? Não adianta, sempre vem isso a cabeça. Levei uns dias pra desligar.
E já começando na viagem, em que a conexão em Campinas me dava 4
horas de espera. Óbvio que a ideia era sair pela cidade, conhecendo
alguns pontos turísticos, mas o cansaço da noite anterior me deixou
sentada por todas essas horas, com preguiça até de fazer lanche. Chegando no Rio, fui direto para o hotel: ônibus, transito lento,
caminhada e taxi. Simmm!!! Jurei que sabia caminhar pelas ruas de
Ipanema, só porque tinha o Waze. Enfim, precisei pegar um taxi, depois
de rodear no mesmo lugar. R$ 7,00 !!!
Hotel oferecido pela organização da Paracanoagem, precisei dividir um
quarto com mais uma pessoa. Um pouco tensa por esse momento, sem saber
quem seria. Mas tudo bem, pessoa super gente fina. Consegui relaxar e aproveitar a companhia!
Após o check in queria dormir o resto do dia, de tão cansada. Mas e a lista de expectativas que "eu sem querer" havia feito? A ordem era aproveitar a cidade. Fui pra Barra, mais precisamente Rio Centro, tentar comprar ingressos
para a partida de vôlei sentado. Brasil jogando. Viagem em
vão. Ingressos esgotados para todo final de semana. Já eram oito da
noite quando retornei pro Colinas, mega cansada: sem jeito, fui dormir
cedo em plena sexta feira no Rio de Janeiro.
Frio na barriga no primeiro dia de trabalho.
Paisagem linda e
encantadora.
Equipe super receptiva.
Pessoas sem pernas caminhando
felizes da vida e até sorrindo! Que surpresa!!! E porque deveriam
chorar? Estão vivos !!! Esse nosso costume de categorizar o que os
outros podem
sentir nos limita como seres evoluídos. Confesso que por mais
neutralidade que tentasse passar, lidar de perto com essa "deficiência
física versus disposição" para a vida me deixava intrigada, parecia que
essas duas situações não combinavam. Bobinha eu.
Talvez
não tivessem uma parte da perna, ou ela inteira, ou mesmo sem as duas,
ou tinham as duas pernas mas não conseguiam movê-las... enfim! Tinham
sonhos, objetivos claros, foco, desejo de vida, disposição, saúde, força
para dar e vender. Incrível como nos deixamos
levar por nossos preconceitos, nos impedindo de pensar para além do
físico. O que é um corpo físico frente a uma mente recheada de
possibilidades e desejos? Vai muito mais longe! Os sonhos é que
impulsionam nosso corpo, e conviver com estes atletas só pude
comprovar isso. Principalmente com a israelense, que veio sem equipe
técnica, nem familiar, nem amigos. Sozinha num país desconhecido. Pra
quê pernas se se tem um sonho?
Lição de vida. Sorrir ... enfrentar os
problemas de frente, como se não fossem os piores do mundo. Sei que cada
um carrega a sua cruz, e sabe o peso dela ... Mas lançar outro olhar
pra cruz alheia ajuda um pouquinho a encarar as nossas de forma
diferente. Ou deveria.
Primeiro final de semana na Cidade Maravilhosa: quase hibernei (uma delícia!). Bauru sem salada na praça com suco natural de abacaxi (sim!!! febre...),
quarto, barulho da tv (nem aí pro controle remoto!), ar ligado,
edredom. Ah se não tivesse que estar às seis da manhã no Estádio da
Lagoa ...
dormiria para sempre!
Ver o sol nascer quase todos os dias. Outro privilégio que tive, isso
que nem estava na minha lista de expectativas! Lindo! Só queria
agradecer por estar naquele lugar!
E nos dias que antecediam aos dia de competição, as equipes
treinavam. E os voluntários passavam por todas funções, de modo que as experiências só aumentavam.
Achei uma baita sacada da organização: um cuidado todo especial com
nossas aprendizagens. Sempre
há algo para aprender, ensinar, trocar. E o grupo era formado por ex
praticantes da canoagem, e por pessoas que mal sabiam a diferença de
caiaque e canoa, por jovens e velhos, pretos e brancos, homens e
mulheres de nascença e escolha de vida! Adorei essa bagunça!
E a semana foi indo devagar, dormindo cada vez mais cedo, sem festas e
noitadas, coração de mãe apertado. E deu aquela vontade de não estar
mais ali, de querer voltar pra casa. E com tanta liberdade, me sentia
sozinha. Com tantas possibilidades, não sabia
o que fazer. Com aquela baita lista de expectativas, e vontade nenhuma.
Bem feito! Quem mandou?! Aprende!
Acabei desistindo do
passeio a Búzios, troquei o tal do paraíso pelas competições. Afinal,
eu estava participando do maior evento esportivo do mundo, com mega
instalações, atletas super heróis. Não poderia desperdiçar a oportunidade. Assisti ao goalbol, bocha e volei sentado. Visitei o Parque Olímpico, conheci algumas arenas. Não me arrependo da troca. Com certeza voltarei ao Rio.
Dia de competição. Torcida por dentro para o nosso Brasil. Pronta para trabalhar, tentando ser útil em qualquer função. Fui designada para atuar na linha de chegada. Pude acompanhar o percurso percorrido pelos nossos super heróis. Ver no rosto a felicidade de ter conquistado o sonho, e o semblante de quem não foi tão bem. Foi o máximo.
Encerrada as competições, último dia de trabalho, organização do material, almoço de confraternização, despedidas, surpresas, e a certeza de que tudo valeu a pena.
Trabalho encerrado com louvor, dever cumprido, e mais três dias no RJ. E
aquela sensação de culpa de novo, saudades dos filhos. Sexta feira na
Lapa, seguidos de dois dias hibernando. Tarde de praia e fones de
ouvido. Noite em Copa. Malas prontas. Fim de viagem. E que venham outras
...Fica a experiência, e a vontade de viver tudo isso de novo. Se faria diferente? Não sei. Aprendendo a não criar expectativas.